Estava uma noite pouco convidativa para sair. Húmida. Um manto de cacimba cobria as ruas junto às docas. Mesmo assim, muitos noctívagos aventuravam-se. Saborear uma bebida ou dar um pé de dança nos bares daquela zona turística da cidade, satisfazia os mais afoitos e de vidas libertinas.
Dois homens caminhavam, calmamente. A sobriedade, o aspeto conservador, porte atlético, mas magros, distinguia-os dos demais. Pararam assim que ouviram um chiar de pneus e um grito aflitivo. Um carro acabara de atingir um rapaz. Num impulso, acorreram ao local onde se dera o acidente.
Enquanto corriam, o mais alto dos dois disse:
– Parece que foi grave. – Tinha cabelo loiro, olhos azuis, de feições finas e pouco sensíveis. Mas expressavam o choque ao perscrutar a escuridão.
O outro homem era muito baixo, com pouco mais que um metro e sessenta de altura. De cabelo e olhos escuros.
– Sim – disse – O carro ia depressa demais para uma noite como esta. Os atropelamentos são algo terrível.
Voltavam a esquina de uma das ruas mais movimentadas, quando o acidente se lhes deparou em frente aos seus olhos. Um rapaz com uns dez ou onze anos de idade, prostrado no chão molhado. Direito e imóvel, a um metro de distância das rodas dianteiras do carro. O motorista, branco como a cal, não conseguia deixar de transparecer surpresa e choque. Encostara-se ao carro. O seu olhar ia alternadamente do rapaz para a multidão que se juntara. Havia sempre os curiosos. Uma solidariedade quase macabra para com as vítimas.
– Nem sequer o vi. – Balbuciava o motorista. – O miúdo saiu a correr por entre dois carros estacionados…
O homem loiro deu um passo em frente, observando as pessoas ali reunidas.
– Alguém chamou a ambulância? – inquiriu.
– Um senhor ligou agora mesmo para o 112. – Respondeu uma mulher muito impressionada. – No entanto, já não servirá de nada. Eu vi o acidente todo e… O rapaz não se mexe… Eu…
– Nunca se sabe – replicou o loiro. – Ás vezes os médicos conseguem fazer coisas maravilhosas. – Olhou para o miúdo e murmurou: – Não sei se seria bom mexer-lhe, cobri-lo ou algo assim.
– É melhor não – respondeu o homem baixo. – Se ainda está vivo pode ser mau mexer-lhe. – Olhou para o rapaz e voltou a cara. – Uma coisa diabólica, João. Um catraio assim…
O azul penetrante e frio dos olhos do homem loiro, recaíra sob o motorista lívido que deu um passo em frente.
– Nem sequer o vi. Apareceu, assim, de repente e… – interrompeu-se quando reparou que o outro lhe voltava a cara reprovador.
Passados alguns minutos um carro da polícia e a ambulância estacionaram no meio da rua. Os dois homens recuaram, misturando-se na multidão. As suas feições alteraram-se, enquanto o médico examinava rápida e eficazmente o rapaz. Encobriu, de seguida, o corpo inerte com um lençol.
– É melhor irmo-nos embora. – Disse o mais baixo. -Não queremos chegar tarde.
O Loiro olhou para o seu pulso. Possuía um dispendioso relógio de ouro.
– Não chegaremos tarde. O Senhor Mendes disse que só estaria lá por volta das onze horas.
Permaneceram no local mais uns minutos. Observando todo o aparato montado pela polícia e a multidão ávida e curiosa. Alguns agentes tentavam mandar as pessoas às suas vidas com algum sucesso e engenho. Continuaram a sua caminhada em direção ao cais, em silêncio, por mais umas centenas de metros. Embrenharam-se na cacimba e por ruelas desertas.
– Os acidentes como este fazem-nos partir o coração. – Quebrou o silêncio o mais baixo.
O loiro anuiu lentamente com a cabeça.
– O rapaz devia ter a idade do meu filho mais velho.
– Do meu também. Um pai fica aterrado ao ver algo assim.
O loiro tornou a acenar afirmativamente com a cabeça.
– O pior de tudo é que não se pode fazer nada a esse respeito. Não podemos esperar que um rapaz da idade dele esteja todo o dia em casa de roda dos jogos de computador ou agarrado às saias da mãe. A única coisa que se pode fazer é avisá-los para terem cuidado quando atravessam as ruas. E, depois, cruzamos os dedos.
– É isso mesmo. – Concordou o mais baixo. – Se apanho um dos meus miúdos a atravessar a rua sem cuidado, dou-lhe tantos açoites que fica sem poder sentar-se durante um mês.
Abrandaram os passos, e mais cautelosos conversavam em surdina, aproximando-se do rio.
– É melhor irmos mais para o escuro – disse o loiro. – O barco deve chegar junto daquela linha pintada.
A parte oposta ao rio era mais escura. A luz do candeeiro de rua não alumiava, tanto pela cacimba bem mais cerrada como por ser fraca. Um local excelente para se poderem emboscar. Os paralelos molhados refletiam um brilho fosco. O silêncio imperava naquela parte esquecida do cais e, o som suave da
pouca ondulação embatendo na amurada, transformava a noite num cenário misterioso. Esperaram pacientemente.
Ouviram-se passos, não muito apressados, mas firmes. Uma figura alta, de porte também sóbrio, aproximava-se. Com a gola do casaco a proteger o pescoço do frio. As mãos nas algibeiras e postura muito direita. Denotava nervosismo quando se aproximou da amurada. Olhou para a água, depois para o relógio e novamente para a água. Permanecia ali, batendo com os pés nas pedras da calçada.
Na escuridão, os dois homens observavam-no. Sabiam bem ao que vinha. Mas estavam preparados para qualquer eventualidade. O loiro, deu um passo em frente saindo da obscuridade.
– É melhor não pensares mais no barco. Não irás nele esta noite. – disse.
Quando ouviu a voz do loiro, o homem alto voltou-se e os seus olhos escuros denotavam receio. Esforçou-se para evitar que os seus lábios estremecessem ao falar.
– Dá-me uma oportunidade, João…
– Não há oportunidades. – Respondeu o loiro com voz firme e rouca.
– Por amor de Deus, João. – disse o alto. – Procede como um ser humano… deixa-me ir nesse barco. Quem poderá vir a sabê-lo? Passarei o resto da minha vida fora do país… Credo, João! Fomos criados juntos… somos amigos há vinte anos…
O loiro abanou negativamente com a cabeça.
– Não o devias ter feito. – disse. – Deixámos de ser amigos quando o Senhor Mendes nos deu uma ordem a teu respeito, esta tarde. Não podemos dar-te nenhuma oportunidade, Carlos.
Carlos observou-o demoradamente. Encolheu os ombros, impotente. Dos seus olhos transpareciam o desespero e a ansiedade. Não saberia se havia de permanecer quieto ou fugir em qualquer direção. Para bem longe dali. Fincou as mãos nos bolsos.
– É melhor voltares-te, Carlos. – disse suavemente o homem mais baixo.
Carlos voltou-lhe as costas e, então, num ato de puro desespero, começou a correr. Tinha apenas dado meia dúzia de passos que lhe pareceram uma eternidade. Aceitara o seu destino. Ouviu um silvo romper o ar. Uma dor lancinante fê-lo quedar de joelhos no empedrado molhado. Mais três silvos e soltou uma espécie de grito. Caiu com a face virada para o chão encharcado da cacimba e de sangue.
Os dois homens encaminharam-se-lhe e o loiro, insensível, virou-lhe a cabeça com a biqueira do sapato, certificando-se que estava morto.
– Pronto – disse – Vamos deitar as armas à água e abalar daqui para fora.
As duas pistolas descreveram um arco antes de desaparecerem no rio com um ligeiro e breve ruido.
Esperaram alguns momentos, observando as redondezas. Ninguém tinha presenciado o sucedido. Seguiram o seu caminho em silêncio.
– Não consigo afastar o acidente do pensamento. – Proferiu o mais baixo passados uns largos minutos. – Foi terrível de se ver.
– Terrível – concordou o loiro. – Espero que o motorista apanhe vinte e cinco anos. Imaginem o inconsciente! Conduzir tão depressa numa noite tão escura como esta. – Fez uma breve pausa e abanou a cabeça. – Parece que a primeira coisa que vou fazer amanhã é ter outra conversa com os meus filhos.